Por Mariana Cartaxo
O período ditatorial deixou profundas marcas no Brasil. Hoje em dia, com o fim do estado de exceção e através do processo de redemocratização, a sociedade pode observar com mais clareza os fatos que ocorreram durante o período. Passados 50 anos da ditadura, é cada vez mais importante revisitar e ressignificar as estruturas que consolidaram o novo Estado de Direito brasileiro.
A Lei de Anistia é fundamental para compreender a nova fase em que o Brasil se inseriu. Foi um marco no processo de transição democrática. Com a luta pela anistia geral, ampla e irrestrita formou-se um hino de liberdade em meio à decadência de um sistema político repressor. Houve mobilização de diversas camadas da sociedade em direção a mudanças nas estruturas institucionais. Por outro lado, a sua construção foi objeto de diversas articulações políticas, o que pode ter desvirtuado o verdadeiro objetivo da lei.
O que se aponta, como abordado por Daniel Reis, é que a Lei de Anistia foi um pacto da sociedade que, apesar de ter sido firmado como um acordo, não foi unânime, nem justo. Mesmo após fortes manifestações populares e com articulação da sociedade civil, os grupos não tiveram suas demandas acolhidas. Uma lei limitada e pouco ambiciosa foi estabelecida. Colocou-se um fim abrupto ao processo de debates e contestação política.
Grupos políticos hegemônicos muito influenciaram a formação dessa lei. O poder de veto das elites militares, por exemplo, foi determinante. Como observa Maria Celina D’Araujo, as negociações para a elaboração contaram com forte poder de veto da cúpula militar devido a sua bem estabelecida autonomia em relação ao restante das instituições estatais.
Com o poder de veto, puderam definir maneiras de se esquivar da responsabilização por atentados aos direitos humanos durante os “anos de chumbo” e enterrar, de vez, qualquer tipo de questionamento ou contestação. Por isso, Daniel Reis afirma que, a partir dessa lei, a sociedade brasileira foi sentenciada a múltiplos silêncios.
Um dos silêncios seria acerca da tortura e dos torturadores. Com a Lei de Anistia passou-se a ignorar o assunto. Criou-se o consenso de que o passado deveria ser deixado para trás. Não houve a construção de um debate consistente acerca desse tema, nem a busca por verdade ou justiça. Ao tocar em um ponto tão polêmico seria mandatório aceitar que a prática de tortura era socialmente aceita e institucionalmente legitimada pelo Estado. A Anistia era a tentativa de auto-absolvição de uma sociedade envergonhada.
Outro silêncio seria o relacionado ao apoio da sociedade à tortura. A conjuntura mostra que as práticas ditatoriais e a conduta militar eram amplamente defendidas por grandes parcelas da população. Com o fim do regime, contudo, essa relação da sociedade com o Estado totalitário é deixada de lado. Ao se instituir-se um novo paradigma no regime político brasileiro, evitou-se comentar as singularidades do passado.
O questionamento desses silêncios é a melhor maneira de construir a revisão da história brasileira. O passado é importante não só como forma de reflexão e planejamento, mas também como um panorama constituinte do nosso presente. Se não há responsibilização acerca das truculências passadas, não haverá espaço para contestar as torturas cotidianas e recorrentes no território brasileiro.
A estrutura de violência institucionalizada ainda está presente, atingindo parcelas excluídas da população. A repressão policial está a serviço do Estado e escolhe bem suas vítimas, jovens de classe baixa e moradores de periferias brasileiras. Enquanto isso, não há visibilidade, nem questionamento acerca da atuação da polícia no Brasil. Instaura-se mais um silêncio. Na medida em que as atitudes de truculência forem convenientes para o poder público, não haverá mobilização contrária.
Rever a Lei de Anistia não é só uma forma de conciliar o presente com o passado, é também uma maneira de reconstruir visões de mundo que ainda reinam no nosso sistema político. A reparação das vítimas das violações da ditadura só será completa quando os responsáveis por crimes contra a humanidade forem apontados e responsabilizados por seus atos. A construção de uma sociedade mais justa depende de um passado exposto e acessível a todos os indivíduos.
Referências:
REIS, Daniel Aarão. Ditadura, anistia e reconciliação. Estud. hist. (Rio J.), Rio de Janeiro, v. 23, n. 45, June 2010. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-21862010000100008&lng=en&nrm=iso (acesso: 13 de abril de 2014)
D’ARAUJO, Maria Celina. O estável poder de veto Forças Armadas sobre o tema da anistia política no Brasil. Varia hist., Belo Horizonte , v. 28, n. 48, Dec. 2012 . Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-87752012000200006&lng=en&nrm=iso> (acesso: 13 de abril de 2014)
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